2 de setembro de 2010

CONTO: NÃO SE PODE ESPERDIÇAR REMÉDIO

Dona Laurita sentiu os ares mudando naquela segunda-feira quando foi varrer o terreiro da cozinha. Uma zonzeira de barata tonta montou-lhe no cangote, fazendo-a focinhar o cisco varrido. Seu marido, Tomás, veio correndo atender seus reclames pelo prumo, pelo rumo, pelo siso e a descobriu passando mal. Chamaram os filhos, a benzedeira, o curandeiro, os vizinhos e os amigos, decidindo pelo atendimento médico especializado. Levaram-na ao hospital municipal, o esculápio de plantão examinou-lhe o fundo dos olhos, a sola da língua, apalpou-lhe os pulsos, auscultou-lhe o peito e mediu a força das veias para finalmente encaminhá-la a Goiânia. Era coisa grande para seus poucos recursos hospitalares da província.

Chegando aqui foi direto ao hospital do câncer e lá teve de fazer uma grande cirurgia, retiraram-lhe mais da metade dos intestinos. A mulher teve complicações pós-operatório, mas foi razoavelmente bem. Chegou o dia de receber alta-hospitalar e o médico pediu exames completos. A paciente viajaria para longe, lugar de poucos recursos, estrada ruim, parentes pobres, etc., não ficava bem ter de voltar por causa de coisas menores. Vai daí, num dos exames carecia tomar dois copos d'água com remédio. Nesta água foi colocado um medicamento pra fazer contraste nas radiografias. Ela tomou o primeiro copo e empacou no gosto muito ruim não ia encarar a segunda dose nem que a vaca tossisse. O enfermeiro apareceu de cara amarrada: se não tomasse o remédio não fazia o exame, não recebia alta e ainda ia levar um sabão do médico em doses homeopáticas. Era um palavreado desastroso para a paciente e o filho de plantão da hora.

A doente aperreou-se com a possibilidade de não viajar. Arengar baixinho na saudade das galinhas, de sua casa, dos seus cacarecos e das amigas. Lamentava a impossibilidade de rever sua casinha pela última vez. Ia morrer e gostaria que fosse lá, talvez ocorrendo o desenlace por aqui nem subisse aos céus. O filho escutando ao lado sentiu o baque da tristeza da mãe e quase chorou de urrar com ela. Os olhos marejaram na precisão de acudir, mandando-o tomar uma atitude. Celi, mais conhecido como Geléia, rapa de tacho, matutou no drama da mãezona. Ela não queria tomar a água do 2º copo. Sem isto, o enfermeiro afeminado, sujeito de maus bofes e ares de machão não faria o exame, sem exame não tinha alta hospitalar.

Geléia, Rapa de tacho, estava muito desiludido, se sua mãe não fizesse o exame não podia ir embora. Ele esperava com paciência, fazia um tempão. Insistiu novamente pr' ela beber, não teve jeito. Olhou pros lados e só estavam os dois no apartamento. Espreitou a porta e viu o corredor deserto. Pra não empatar o exame resolveu virar o copo no queixo, sentindo as agruras do gosto rasgar-lhe a goela. Era meio amargo, meio doce, meio azedo, meio qualquer coisa ruim... sua mãe tinha razão em não querer aquilo. Uma nuance de tontura invadiu sua mente, o estômago embrulhou refugando receber a encomenda e precisou trancar os registros de saídas pra coisa não escapulir na marra. A força no trancar das torneiras exigia muita emergia a ponto de ficar meio roxo. Mas ficou firme nas correias!

Nisto chegou o enfermeiro de cara ruim perguntando se havia tomado o contraste? Responderam afirmativamente. Olhou o acompanhante e o viu sestroso de atalaia, aquilo estava mal contado e carecia astucia de Sherlock Holmes. A velha não ia tomar os dois copos, sem regurgitar e estava razoavelmente bem. O acompanhante estava inquieto na cadeira. O enfermeiro ficou amarrotado, mas levou a velha pra sala de exame. Virou dona Laurita até do avesso para examinar. Começou a apertá-la na palavra querendo explicações sobre o contraste, não devia ter tomado tudo, porque as imagens não se formavam adequadamente. Ela continuava firme na resposta, não podia entregar seu filho no conluio com ela.

O cabra era esperto e voltou à sala de espera sozinho, ia exercer sua verve Sherloquiana. Chegou perto do suspeito e sapecou à queima roupa: porque você bebeu o contraste de sua mãe? Isto é muito perigoso! Celi ficou sem ação pensando da mãe ter contado a travessura, ela era uma pessoa muito correta e não sustentaria a mentira. Teve de confirmar a falta cometida. O plantonista olhou nele de cima abaixo, medindo-o como se fosse um defunteiro tomando medidas para pijamá-lo com madeira. Mandou ficar de pé e fazer um quatro, sem cambalear. Celi, só de pensar entortou no prumo e se viu pequeno para tarefa tão grande, não conseguiu. Pronto! Tinha o matuto na mão e ia descontar suas frustrações do dia com ele. Chamou outro enfermeiro, mais sacana ainda tratando-o como médico, falando de problemas de saúde, finalmente contou sobre o rapaz ali ter tomado o contraste destinado à mãe dele, falavam baixo em conferência de embuste.

Os dois aprontaram com meu primo convencendo-o sobre o remédio ser um complexo de hormônios femininos, à base de cordão umbilical de fetos meninas. Se usado por homens broxava qualquer um pra sempre. O único meio de salvar-se do efeito danoso do remédio era tomar um purgante pra limpar as tripas o quanto antes. Mesmo assim não havia garantia, os resíduos da droga aniquilavam definitivamente o "bráulio", deixando-o inoperante para sempre. E lascou a receita verbal, boquejado à boca pequena: \"purgante de Jalapa". Pelo menos uma garrafinha de 90 ML. Celi saiu de fininho e foi à farmácia em frente aviar a receita oral. Carecia se esmerar para salvar-lhe a virilidade em vias de perdimento definitivo, bebeu a coisa num gole só, no carro mesmo.

Foi correndo pra casa e no caminho resolveu aborrecer os santos de sua fé, empenhando votos. Se conseguisse reverter o mal, ia a pé de Porongatu a Mara Rosa carregando uma pedra de cinco quilos... nããão! De dez! Chegou à casa de suas sobrinhas ali perto no setor sul aperreado com os pensamentos, com os roncos da barriga, cansado só de pensar no pagamento da promessa. Sair do carro foi custoso, porque a coisa já fazia efeito guerreando com os miolos de tripa, avisando de arrebentar porteira, quebrar cuecas, desabonar vergonhas, ganhar o mundo. Entrou no banheiro às pressas por volta de nove horas da manhã. A noite chegou e ele nada de sair de lá. Só saiu carregado, amuado de tanta fraqueza quando o relógio moeu as vinte e uma horas. Estava magro, muito magro! Uns vinte quilos. Os olhos esbugalhavam flutuando no deserto como os de uma caveira. Só aí pode atender ao telefone. Ao pegar o aparelho viu um recado na secretária eletrônica.

Era do enfermeiro sacana lá do hospital: Senhor Celi, aquilo que falei é apenas uma brincadeira. O contraste é um remédio inofensivo e não precisa se impressionar. O senhor saiu tão rápido que não pude desmentir. Não precisa se preocupar, será expelido naturalmente. Um abraço. Celi ficou irado, a ponto de mandar o telefone no chão com toda força. O aparelho quicou com pouca intensidade como se nada tivesse arremessado. O homem não tinha força nem pra se levantar da cadeira. Vai levar um par de dias para se recuperar. Tem mais, o santo de sua fé é muito rigoroso e não aceita descontratar negócios feitos. Prometer não é obrigado, mas uma vez prometido tem de cumprir ou então pode acontecer a maldição falada pelo enfermeiro... melhor não padecer o castigo!

Escritor: Delegado Euripedes III - Email: euripedes03@ig.com.br

BREVE CURRÍCULO
EURIPEDES DA SILVA - nascido em Colômbia-SP no ano de 1950. Casado com Lourdes C Silva, tendo quatro filhos adultos e dois netos. Colou grau em 1.979, em direito pela UFG. Ingressou na Polícia Militar em 1.972, se graduando sargento onde permaneceu por cinco anos. Aprovado para del. de pol., na Polícia Civil de Goiás, em 83. Como delegado de polícia de carreira, atuou nas cidades de Itumbiara, Goiatuba e Goiânia, Publicou o romance policial AR-15 - A NOVA LEI com o pseudônimo Delegado Euripedes III - Se encontra no prelo Embosca - a política a serviço do crime e Macumba - o terreiro da morte. CONTATOS telefone 62 284 72 87 e-mail

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